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No momento, precisamos lidar com duas crises no Brasil: uma aguda, que é controlar a pandemia da Covid-19, e outra crônica, que é interromper a destruição acelerada da Floresta Amazônica, que contribui para o agravamento das mudanças climáticas. Estudos recentes mostram a relação entre o avanço do desmatamento e a transmissão de doenças infecciosas em diversos países pelo mundo. Além das demais consequências devastadoras para a Humanidade, o risco de que a destruição da Floresta Amazônica resulte no surgimento de novas doenças é real.

As privações temporárias que a pandemia nos impõe são pequenas quando comparadas aos efeitos permanentes e arrasadores que nossos filhos e netos enfrentarão com um planeta mais quente, incluindo o aumento significativo do risco de novas epidemias. Por exemplo, o Instituto Evandro Chagas, referência em pesquisa de doenças tropicais, já catalogou 250 novos vírus na região. Cientistas têm “caçado” esses patógenos na tentativa de prevenir sua transmissão para humanos. Afinal, estamos aprendendo com a pandemia da Covid-19 que o investimento adequado nesse tipo de pesquisa e o esforço consistente para deter a destruição de habitats selvagens são fundamentais para nosso bem-estar e para a saúde de nossa economia. Será que o Brasil vai aprender essa lição?

No ano passado, as queimadas na Amazônia e o aumento de quase 30% da taxa anual de desmatamento chamaram atenção do mundo. De lá pra cá, pouco foi feito pelo governo federal para evitar um novo desastre: somos um país sem um plano concreto para cuidar de nossa riqueza florestal e estamos na rota provável de uma taxa de desmatamento em 2020 ainda maior que a de 2019. Entre janeiro e março de 2020, a área de alertas de desmatamento atingiu 796 quilômetros quadrados, a maior para esse período desde o início, em 2015, da detecção de desmatamento em tempo real, pelo Deter, sistema de alerta que apoia a fiscalização e o controle da degradação florestal.

Ficamos assim mais longe da meta de zerar o desmatamento ilegal até 2030, assumida sob o Acordo de Paris. De fato, a primeira meta climática já está perdida: pelos dados do Deter, o Brasil já desmatou cerca de 5.260 quilômetros quadrados entre agosto de 2019 e março de 2020, longe do compromisso de 3.925 quilômetros quadrados para este ano.

Como se não bastasse, o Executivo federal articula a aprovação no Congresso de uma premiação a quem invadiu e desmatou terra pública. A Medida Provisória nº 910, de dezembro de 2019, autoriza titular sem licitação áreas públicas invadidas após 2011, incluindo as desmatadas ilegalmente. Cobram-se valores irrisórios, que chegam a 2% do preço de mercado dessas terras. É um grande prêmio à grilagem, que é o roubo de terras públicas, em geral associado a crimes como fraude, corrupção, lavagem de dinheiro, e até assassinatos.

Importante que deputados e senadores saibam que, se concederem essa licença para grilar, estarão compactuando com mais crimes e queimadas, e incentivando novas invasões, já que criam a expectativa de que elas serão também anistiadas e legalizadas no futuro. Se o país quer reduzir o desmatamento, precisa dar um basta nesse ciclo de ocupação, desmatamento, violência e mudança da lei em benefício de grileiros criminosos. Do contrário, o país vai estimular o avanço da perda florestal e violar os compromissos que sociedade e Estado pactuaram para a redução de gases de efeito estufa na última década.

Os presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, precisam agir sobre a MP 910/2019 com a mesma ética e retidão com que estão conduzindo as respostas legislativas à Covid-19. Devem impedir retrocessos ambientais e todas as propostas de anistia e incentivo à grilagem. Do contrário, alimentarão uma crise aguda com outra crônica, produzindo uma escalada de prejuízos ambientais, sanitários, humanitários e financeiros para o país e o mundo.

*Brenda Brito é pesquisadora do Imazon, Ilona Szabó é diretora do Instituto Igarapé e Natalie Unterstell é diretora da Talanoa

https://oglobo.globo.com/opiniao/artigo-as-duas-crises-no-brasil-24376752