Katna Baran – 11.nov.2020
Não vai ter outro jeito: após a derrota de Donald Trump na eleição nos Estados Unidos, ou o governo Jair Bolsonaro revê sua política ambiental ou corre o risco de perder acordos importante para o país, além de investimentos essenciais para a recuperação econômica pós-pandemia, segundo a socioambientalista Natalie Unterstell.
Formada em administração pela Fundação Getulio Vargas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, ela é hoje uma das principais referências na América Latina sobre mudanças climáticas.
Foi a única brasileira na condição de embaixadora global do Homeward Bound, programa de participação das mulheres na ciência e na política, pelo qual participou de uma expedição à Antártida em um navio só de mulheres.
Em entrevista à Folha, Natalie diz que a eleição de Joe Biden para a Casa Branca deve significar uma “bênção” para a política ambiental internacional, em especial a brasileira.
Ela crê que o novo presidente vai utilizar todas as formas de pressão, como acordos econômicos e de cooperação, para forçar o governo brasileiro a se atentar sobre temas como preservação das florestas, emissão de gases poluentes e prevenção sobre queimadas.
“A tolerância dos americanos com as canetadas antiambientais vai mudar muito agora com o governo Biden.”
O governo de Donald Trump é marcado pela desregulamentação de normas de proteção ao meio ambiente nos Estados Unidos. Quais os principais atos que você destacaria? Foram quase 200 canetadas de desregulações, muitas na área do transporte: reduziu os padrões de eficiência energética nos veículos, tentou impedir que os estados avançassem em regras mais rígidas de controle de poluição e travou a evolução de modos de transporte mais limpos.
Outra medida emblemática foi a revogação do plano de energia limpa da era Obama, que buscava incentivar a transição do carvão para fontes renováveis. Houve também muitas liberações de licenças para novas explorações de petróleo e gás e construção de infraestruturas
para combustíveis fósseis.
Isso gerou uma reação forte. Califórnia e Colorado processaram a administração federal, gerando insegurança e instabilidade e houve reflexos na economia. Ele também não ratificou medidas de contenção dos gases HFCs (hidrofluorocarbonetos), que ferem a camada de ozônio.
Um marco nas mudanças da política ambiental americana foi o anúncio de saída dos EUA do Acordo de Paris. Mesmo que Biden tenha prometido retomar o acordo ao assumir, há um espaço de tempo de mais de dois meses até lá. O que esse tempo representa na prática? Tem sido dito na mídia americana que os agentes políticos da administração Trump já estariam trabalhando com esse cenário e, portanto, tentando garantir que as desregulações e outras medidas possam sobreviver por um tempo. É possível então que a gente vislumbre agora, no apagar das luzes, um período em que eles tentem realmente manter o ‘passar da boiada’, como ouvimos aqui no Brasil.
Em relação à política ambiental do governo Biden, o que você pontuaria como mudanças significativas em seu plano? Ele e a Kamala Harris [vice-presidente] fizeram um plano de ação climática bastante abrangente e detalhado com uma série de prioridades e promessas. Uma é reentrar no Acordo de Paris e, já nos primeiros cem dias, fazer um evento de líderes para engajar os principais países emissores na transição de baixo carbono. Sinaliza uma retomada da liderança americana nessa questão e também sobre acordos que tratam de gases que afetam a camada de ozônio.
Há uma nova agenda doméstica também, como o plano de investimentos verdes de US$ 2 trilhões. É muito dinheiro. Eles falam em ter de fato o New Deal Verde [pacto ecológico] implementado, que há algum tempo está em discussão. Esse estímulo é um sinal muito potente para o resto do mundo. Eles prometem ainda adotar a meta de zerar as emissões de gases de efeito estufa até 2050 e de zerar a poluição até 2035. É um contraste muito grande em relação a Trump.
Você também vê problemas no plano de Biden? Como isso reverbera mundialmente? Não vejo problemas. Ele está oferecendo uma proposta muito sólida e está tentando gerar uma referência para outros países. Há também acenos em relação a China e Brasil. Fala que querem cooperar com a China e que o país vai ter que se comprometer a não só reduzir suas próprias emissões, como garantir que não está exportando emissões para outros países.
No Brasil, eles desejam coibir as emissões oriundas do desmatamento. A vitória do Biden e da Kamala realmente vai ser uma bênção tanto para a política climática internacional quanto para a brasileira. Minha esperança é que possam nos ajudar a adiar e até reverter o ponto de colapso da Amazônia.
Biden prometeu no primeiro debate presidencial que ajudará a juntar US$ 20 bilhões para combater a devastação da Amazônia, mas disse que haveria retaliações se o governo Bolsonaro continuasse a permitir a destruição da floresta. Qual deve ser a pressão do novo presidente americano sobre o Brasil Primeiramente, esse dinheiro que ele está propondo juntar não é um recurso livre. O próprio Brasil propôs um modelo lá trás, o do Fundo Amazônia, em que o investimento seja pago por desempenho. Os Estados Unidos só vão pagar se pudermos comprovar a redução do desmatamento na prática.
Por outro lado, há uma pressão bastante forte no campo do comércio e dos investimentos. Biden menciona adotar padrões de comércio livre de riscos climáticos e de desmatamento. Já vemos esse padrão emergindo no acordo comercial do Mercosul com a União Europeia, e o Brasil quer muito fazer um acordo bilateral de comércio com os Estados Unidos.
Aí reside uma fonte de pressão importantíssima. O Brasil também quer se tornar membro da OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico] e 70% da agenda de compatibilização se refere a políticas ambientais. Trump ajudou o Brasil a ser considerado no processo e é muito provável que Biden mantenha o acordo, mas use isso como uma fonte de pressão. Há também os investimentos estrangeiros alinhados ao Acordo de Paris.
Mudando a política ambiental americana, os investidores privados também ficam mais pressionados a direcionar seu dinheiro? Exatamente. O controle do desmatamento, nosso maior problema ambiental, é um passaporte de entrada nos acordos comerciais, para adesão na OCDE e para receber investimentos.
Bolsonaro criticou a promessa de Biden dizendo que se trata de uma interferência sobre o Brasil, e isso é algo que reverbera entre seus apoiadores. Você vê essa crítica como real? O Brasil precisa de máximo pragmatismo e menos conspirações de ficção ideológica diante do governo Biden. O peso dos Estados Unidos não pode ser ignorado. Por outro lado, toda pressão sobre novos padrões ambientais não questiona nossa soberania. Não é isso que está em jogo, mas sim se o Brasil vai exercer a soberania porque nenhum país quer ser cúmplice do colapso da floresta amazônica.
Assim como o Brasil tem instrumentos para pressionar outros países, o Biden tem instrumentos e vai usá-los para nos pressionar. Vai condicionar qualquer acordo, comercial ou de cooperação, para obter mudanças verificáveis e reais da política na Amazônia. Os instrumentos estão aí, sabemos quais são.
Fomos capa da revista The Economist no ano passado por conta da possibilidade de colapso da floresta. Já perdemos 20% da Amazônia, e cientistas são claros em dizer que, se chegarmos a 25% de desmatamento, a floresta vai chegar a um ponto de não retorno. O mundo inteiro sabe disso. O que está em jogo não é a soberania do Brasil sobre a floresta, mas se a gente vai continuar tendo uma floresta para chamar de nossa.
Bolsonaro sempre repete que o Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente no mundo. Acredita que esse discurso pode mudar? A vitória do Biden faz o Brasil repensar e, muito possivelmente, faz o Bolsonaro adotar um tom mais ameno sobre esse tipo de discurso. Ou ele vai para o confronto, o que seria péssimo para o Brasil, ou ele acomoda. Realmente espero que ele acomode, não só no discurso, mas que tome decisões práticas e importantes, principalmente em relação à Amazônia.
Essa postura mais pragmática na área ambiental pode representar a saída do ministro Ricardo Salles do governo? Uma troca no ministério seria um sinal de disposição a corrigir os rumos na política ambiental.
Quais outros pontos da política ambiental brasileira que podem interferir na relação com os Estados Unidos? Os problemas na política ambiental valem para o Brasil todo. Tivemos recentemente a decisão de desregulação da proteção dos manguezais, a tentativa de mudar a aplicação da Lei da Mata Atlântica e o pior índice da história de focos de queimada no Pantanal. Tudo isso contribui para essa má reputação e descredibilização do Brasil no plano internacional. A tolerância dos americanos com as canetadas antiambientais vai mudar muito agora com o governo Biden.
Outros países importantes já têm mudado suas políticas ambientais, como você citou. Há riscos de o Brasil ficar isolado nessa área se continuar com esse estilo de governar? Sem dúvida. O Brasil já assumiu a posição de pária e, com essa perda da referência que foi Trump para o governo Bolsonaro, o Brasil fica sozinho. Os demais países todos estão unidos nesses acordos e também alinhando compromissos. Se realmente Biden adotar uma meta de neutralidade de carbono até 2050, está se juntando ao Japão, Coreia do Sul, China e União Europeia em compromissos dessa natureza. O Brasil não tem esse compromisso. Realmente, ficamos isolados e temos perdas concretas por isso.
*Entrevista publicada no jornal Folha de São Paulo com a cofundadora do Movimento Agora!, co-fundadora do Política Por Inteiro e conselheira do Centro Brasil no Clima, Natalie Unterstell.