A reunião de Bretton Woods, em 1944, foi o berço de uma nova ordem econômica mundial. No plano econômico, tinha pelo menos dois pilares: o renascimento do comércio e o crescimento dos fluxos de capital voltados ao investimento produtivo. Promovia o planejamento e políticas públicas ativas, como bússolas para as decisões privadas de investimentos transformadores — em infraestrutura física e social, no setor produtivo e na tecnologia. O resultado esperado dessa nova ordem seria incentivar a paz por meio de uma “prosperidade compartilhada e interdependente”.
Como lembra Joseph Stiglitz, no prefácio de “A grande transformação”, de Karl Polanyi (edição de 2001), dois fatores colocaram abaixo este “multilateralismo da paz”. Por um lado, a liberalização dos fluxos financeiros permitiu a especulação, que culminou com o abandono da convertibilidade do dólar americano ao ouro — pilar crítico para a expansão do comércio. Políticas macroeconômicas se voltaram à sustentabilidade dos balanços de pagamento, com juros reais positivos e segurança aos investidores financeiros. Isso coincidiu com a ascensão de uma visão de que somente o livre mercado poderia criar o crescimento e a prosperidade generalizada.
A partir daí, FMI e Banco Mundial se transformam nos bastiões do Estado mínimo, das reformas visando a tolher o escopo da ação pública e da liberalização dos mercados (especialmente os financeiros). Por outro lado, a assimetria no tratamento a desequilíbrios globais aumentou. Na resposta à crise gerada pelo choque dos juros nos Estados Unidos em 1979, as duas instituições de Bretton Woods lideraram programas na América Latina que a afundaram ou a deixaram à deriva por toda a década de 1980. O mesmo receituário se aplicou às economias que emergiram da queda do Muro de Berlim em 1989. Para a Rússia e a Ucrânia, a “salvação da lavoura” (literalmente, no segundo caso) somente viria com a explosão de commodities nos anos 2000.
O resultado foram crescentes ressentimentos, que somente aumentaram após 2009, com a crise global gestada no coração financeiro americano. Sua superação suscitou inicialmente um “sopro de esperança” pelo retorno do “multilateralismo da paz”. Foi quando ocorreu a reunião que elevou o G20 a um fórum de líderes, como um novo centro de uma governança econômica multipolar. Economias emergentes e em desenvolvimento responderam à altura, contribuindo com suas próprias reservas para a recuperação global, e até de algumas com renda per capita muito superior às suas.
Durou pouco a animação: alguns membros do G20 passaram a utilizar o privilégio de emitir moedas fortes para fugir da crise com o afrouxamento monetário (quantitative easing), o que somente agravou a tendência a desequilíbrios e surtos especulativos no resto do mundo. Retornaram às velhas práticas e assimetrias — alguns com toda a liberdade de promover o crescimento e transformações de suas economias; outros, com duros “deveres de casa”, ajustes draconianos, recessão, desemprego e fome. No plano das ideias, falou-se muito, mas o sistema passou a fazer vista grossa quando os ricos se tornaram bilionários, enquanto se acentuou a exclusão social, e a pobreza se ampliou nos países em desenvolvimento. Tudo isso ajudou a criar o caldeirão político da polarização e da ascensão de líderes autoritários que zombam e desprezam qualquer forma de multilateralismo e paz. E aqui estamos.
Força bruta entre grupos de nações não é aceitável, nem uma opção de combate aos riscos reais de mais guerras, tragédias humanitárias, climáticas e nucleares. Condenar odiosas agressões de um país a outros povos é uma função crítica das Nações Unidas. Mas não basta. É urgente que o plenário da ONU volte a exigir, com vigor, um novo multilateralismo — calcado na prosperidade compartilhada e no enfrentamento coordenado às pandemias, à escalada da pobreza e da fome, à crise ambiental e a outras crises globais. Isso não é utopia: é um imperativo para nossa sobrevivência.