Em 1994, ocorreu, em Buenos Aires, o terrível atentado contra a AMIA, uma associação judaica, que provocou 85 mortes, quase certamente pela mão do Hezbollah com apoio da embaixada do Irã, aparentemente em represália a execuções por drones israelenses de alguns de seus dirigentes, no Líbano. Durante meu mandato como deputado federal (2011-2015), membro da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, participei de três reuniões fechadas para analisar os riscos de terrorismo na previsão dos Jogos Olímpicos de 2016. Foi possível traçar um quadro aproximado de organizações perigosas de origem xiita ou sunita. Eram ameaças de natureza diferente. O Hezbollah possuía e possui uma poderosa rede, não apenas na famosa “tríplice fronteira”, de missão basicamente logística e política. Foi também detectada a presença da al Qaeda (o Estado Islâmico veio depois) que obviamente nos preocupava muito mais. Ficou clara nossa vulnerabilidade a atentados contra terceiros. Felizmente nada aconteceu.
O Hezbollah é um partido de massas libanês, majoritário e hegemônico na comunidade xiita, vinculado ao Irã, que possui uma força militar poderosa — Israel a experimentou, em 2006 — e que recorre, eventualmente, ao terrorismo. Reduzi-lo a isso, no entanto, é um erro de análise. Utiliza esse instrumento de forma “racional” da mesma forma que seus padrinhos da República Islâmica do Irã. É um terrorismo de Estado nos moldes praticados por diversos países: EUA, Rússia, até a França, nos anos 80, quando explodiu um barco do Greenpeace. Diferentemente do jihadismo, seu terrorismo é seletivo, instrumental e obedece a conjunturas.
O Brasil, todos esses anos, nunca pegou rebarba do terrorismo originário do Oriente Médio, fundamentalmente por ser visto como país diplomaticamente equilibrado. Topicamente, nos envolvemos em mediações fracassadas mas reveladoras da ampla interlocução do Itamaraty com os diversos atores. Alguns governos de Israel reclamaram de parcialidade mas a posição brasileira esteve afinada com as resoluções da ONU e sempre defendeu sua existência e direito à segurança. A relativa exceção foi justamente durante o regime militar, no governo Geisel, quando o Brasil votou na ONU aquela moção equiparando o sionismo ao racismo. Na época vendíamos blindados Urutus a Saddam Hussein.
Com o governo Bolsonário um poderoso segmento pentecostal, influenciado por seus congêneres norte-americanos, obteve a promessa da mudança da nossa embaixada para Jerusalém e um alinhamento cego com as administrações Trump e Netanyahu. A mudança da embaixada seria um tiro de canhão no pé na relação econômica com o mundo muçulmano. Nos colocaria expostos ao terrorismo islâmico. Agora, o apoio do Itamaraty ao ato de gangsterismo internacional, a morte do general Qassem Suleimani, foi de uma estupidez tão grande quando o dito cujo. Nos solidarizamos com um ataque contra um país com o qual temos importantes relações diplomáticas e comerciais (2 bi de superávit). Comprometemos nosso status de país neutro e nos expondo a atos terroristas contra alvos norte-americanos, no nosso território.
Trump escancarou a Caixa de Pandora. Sua derrota inicial será geopolítica com a retirada das suas tropas do Iraque (que serão, alegremente, substituídas pelos russos). Sofrerá inevitáveis represálias militares durante o processo. Quanto mais tempo ficar, pior. Já avisou que vai retaliar bombardeando o Irã, inclusive alvos “culturais”. A retaliação da retaliação será, possivelmente, no estreito de Ormuz, com minas e misseis contra petroleiros. A escalada será o bombardeio de cidades iranianas. Aí começa o vale-tudo com atentados terroristas em vários continentes. Só que dessa vez não haverá uma razão política para nos incluírem fora dessa. Perigamos virar campo de batalha …
Trump cometeu uma burrice extraordinária: o Iraque e o Irã estavam tomados de protestos e, num passe de mágica, despertou o fervor nacionalista de dois povos humilhados. Podem não gostar dos seus regimes, repressivos e corruptos, mas odeiam mais ainda o agressor estrangeiro, o “cruzado”. Trump vai perder essa guerra assimétrica — a capacidade dos xiitas de sofrer baixas é ilimitada, a dos EUA longe disso — no Iraque e alhures. Quanto mais atacar maior será seu prejuízo final. Só que periga arrastar junto alguns sócios desavisados. O Itamaraty, dominado pelo terraplanismo geopolítico do recruta Zero e de seu fiel escudeiro medieval, nos torna fortes candidatos às rebarbas econômicas e estratégicas do porvir.