Oferta de energia no país está garantida para as próximas décadas
A decisão do Ibama de negar a licença para a exploração do bloco FZA-M-59, localizado na Foz do Amazonas, suscitou reações acaloradas entre os interessados na extração de petróleo na região. Além de ignorarem que a decisão se embasa em análises técnicas sobre os riscos ambientais do projeto, seus críticos defendem que a exploração de petróleo na área é essencial para garantir a oferta de energia no país, financiar a transição energética para fontes renováveis de baixo carbono e gerar empregos e renda no Amapá e Pará.
Infelizmente, por mais que esses argumentos pareçam importantíssimos, eles se baseiam numa visão equivocada, anacrônica e até ingênua sobre o papel do petróleo e dos combustíveis fósseis nas próximas décadas para o Brasil, em particular para Amapá e Pará, razão pela qual é necessário analisá-los de maneira coerente para qualificar o debate público.
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que a oferta de energia no país está garantida para as próximas décadas, seja porque boa parte dela já é proveniente de fontes renováveis (45% em 2021, de acordo com a EPE, órgão vinculado ao Ministério de Minas e Energia), seja porque as reservas de petróleo já descobertas, notadamente do pré-sal, são significativas e continuam a se expandir: em 2022 o Brasil teve um índice de reposição de reservas de 246%. Isso significa que, para cada barril produzido, outros 2,46 tiveram sua existência comprovada. Foram 2,7 bilhões de barris em novas reservas, todas provenientes de bacias consolidadas como a de Santos e de Campos.
A transição energética não depende da receita a ser obtida com petróleo.
Na verdade, é o contrário: à medida que investidores, empresas e governos
alocam recursos na busca e desenvolvimento de reservas de petróleo, diminui
a capacidade de investimento em fontes renováveis
Ainda que o ritmo de descobertas se reduza nos próximos anos, deve se considerar que a demanda mundial por petróleo pode ser atendida pelos campos já existentes e projetos aprovados, conforme cenário da Agência Internacional de Energia para atendimento do Acordo de Paris (IEA, 2022). Para quem duvida da consistência de tal cenário, cabe dizer que a IEA não é um organismo de viés ambientalista, ao contrário: ela foi criada pelos países desenvolvidos para garantir a segurança energética, propósito que permeia suas análises até os dias de hoje.
Isso nos leva ao segundo argumento, de que a transição energética depende da receita a ser obtida com a produção do petróleo. Na verdade, é justamente o contrário: à medida que investidores, empresas e governos alocam recursos financeiros na busca e desenvolvimento de reservas de petróleo, diminui a capacidade de investimento em projetos de fontes renováveis de energia. Sejam eles projetos tradicionais, como os de energia eólica, solar fotovoltaica e biocombustíveis, ou inovadores, como eletrificação dos transportes, hidrogênio de baixo carbono e combustíveis sintéticos.
Essa competição pela destinação dos recursos é patente no Plano Estratégico 2023-2027 da Petrobras, a qual pretende destinar a maior parcela dos investimentos para exploração e produção de P&G (US$ 65 bilhões, equivalente a 83% dos investimentos), enquanto a alocação de recursos para biorrefino, o maior investimento planejado em fontes renováveis, corresponde a apenas US$ 0,6 bilhões. Com isso, a Petrobras aponta na contramão das necessidades mundiais, as quais exigem que a mudança para as energias renováveis seja muito mais rápida do que seus planos indicam. Em 2030, para cada dólar investido em combustíveis fósseis outros 5 serão destinados a fontes limpas de energia e 4 em ações de eficiência energética e gestão da demanda, também de acordo com a Agência Internacional de Energia.
Em tal contexto, investir em projetos em uma nova fronteira exploratória, onde a produção de petróleo se iniciará em apenas 10 anos e levará pelo menos outros 10 para se pagar, corresponde a alocar o dinheiro dos acionistas (sociedade brasileira inclusa) numa aposta de alto risco, a qual só será vencedora se a humanidade perder o combate às mudanças climáticas.
Há quem considere que o último argumento, de que empregos e renda a serem proporcionados pela exploração de petróleo nos Estados de Amapá e Pará, é suficiente. Mas ele se baseia numa ideia ingênua e equivocada, a de que a exploração offshore de petróleo gera empregos e desenvolvimento nos Estados confrontantes a ela. A realidade é que a atividade offshore em sistemas de águas profundas, como seria o caso da Foz do Amazonas, concentra mais de 90% dos investimentos no aluguel de sondas e outras embarcações especializadas e na aquisição de equipamentos e serviços exclusivos para a atividade. Estes são contratados em quase sua totalidade com grandes empresas instaladas nos Estados do RJ e SP e com multinacionais gigantes do setor instaladas em outros países.
Essas empresas, em virtude do alto grau de especialização e das certificações exigidas, geralmente contam com um quadro estabelecido de profissionais e dificilmente fazem esforços significativos de capacitação de pessoal local ou de empresas que já não operem com eles. Isso faz com que a inserção de empresas e trabalhadores locais fique muito restrita a serviços de baixa complexidade, como limpeza e vigilância, e a geração de emprego e renda associada sejam pequenas.
Mesmo os royalties têm efeitos limitados: eles só são recolhidos com a produção efetiva de petróleo ou gás, e dessa maneira só serão recebidos no futuro e, ainda assim, dependentes do preço internacional do petróleo e do volume produzido, os quais variam significativamente. Dessa maneira, os Estados em questão só receberiam royalties depois de 2030. É certo que nesse momento a pressão pela taxação de carbono e a competição com produtores tradicionais de petróleo e gás natural como Arábia Saudita e Rússia serão grandes, podendo inclusive inviabilizar a produção em áreas ambientalmente sensíveis como a Foz do Amazonas.
A defesa desses argumentos é um reflexo de uma visão que não condiz com os desafios impostos ao mundo pelas mudanças climáticas. É forçoso entender que as oportunidades de geração de renda e competitividade do país virão da produção de bens e serviços com baixa emissão de carbono, que respeitem trabalhadores e protejam o ambiente. Investir em petróleo no longo prazo é apostar contra o combate das mudanças climáticas e a garantia do bem-estar das gerações futuras. É essa aposta que queremos para o Brasil?
Ricardo Junqueira Fujii é especialista em conservação do WWFBrasil.
Suely Araújo é especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima.