A afirmação é de Al Gore, ex-vice-presidente dos Estados Unidos e vencedor do prêmio Nobel da Paz pelo combate ao aquecimento global
“Se o povo brasileiro deixar claro no processo eleitoral que quer lideranças comprometidas com a solução da crise climática, os benefícios para o Brasil em termos de empregos, de um ambiente mais seguro e limpo e de um futuro mais próspero são muito claros de se ver. Não há controvérsia.”
A afirmação é de Al Gore, ex-vice-presidente dos Estados Unidos e vencedor do prêmio Nobel da Paz por sua atuação no combate ao aquecimento global.
Em entrevista exclusiva à Folha, feita por telefone, Al Gore disse que não seria apropriado defender um candidato nas disputas presidenciais brasileiras, mas pediu que as pessoas se informem ao máximo sobre o atual estágio climático e levem isso em conta ao votar.
“Espero que os brasileiros que compartilham dessas mesmas preocupações, e do entusiasmo sobre as novas oportunidades, considerem participar deste discurso, aprendam sobre a crise climática e se tornem participantes ativos nas eleições de outubro”, disse.
Sobre os discursos de raiz golpista do presidente Jair Bolsonaro (PL) contra as urnas eletrônicas, Al Gore destacou que qualquer líder nacional que procure minar a confiança pública é um inimigo da democracia.
Em 2000, o então candidato do partido Democrata à Presidência dos EUA aceitou um resultado eleitoral extremamente apertado e reconheceu seu adversário, George W. Bush, como vencedor —a despeito de toda a confusão em torno do resultado das urnas.
Na entrevista, Al Gore também lembrou do diálogo constrangedor que teve com Bolsonaro durante o Fórum Econômico Mundial de 2019, garantiu que não é a favor da internacionalização da Amazônia e comentou o lançamento de um treinamento gratuito para formar lideranças climáticas no Brasil. A iniciativa é do Climate Reality Project, organização global fundada por ele e representada no país pelo CBC (Centro Brasil no Clima).
O sr. considera que a postura de Bolsonaro em relação às mudanças climáticas prejudica as ações de combate ao desmatamento na Amazônia? Vê relação entre essas duas coisas?
Claro. As políticas adotadas no Brasil ou em qualquer outro país têm impacto significativo no agravamento da crise climática ou em sua resolução.
Estou ciente de que vocês têm uma eleição se aproximando no início de outubro. Não sou cidadão brasileiro, então não acho apropriado ser um defensor na disputa política de vocês. Isso cabe aos brasileiros decidirem.
Mas encorajo todos a se informarem ao máximo sobre a crise climática e sobre a bifurcação na estrada que o Brasil enfrenta agora. Encorajo as pessoas a votarem quando esta eleição chegar e peço que aprendam mais sobre por que essa crise climática é a chave para o futuro, para o bem ou para o mal.
Se decidirmos resolver a crise climática, e se o povo brasileiro deixar claro no processo eleitoral que quer lideranças comprometidas com a solução da crise climática, os benefícios para o Brasil em termos de empregos, de um ambiente mais seguro e limpo e de um futuro mais próspero são muito claros de se ver. Não há controvérsia.
Ainda assim, o interesse [da indústria] dos combustíveis fósseis em todos os países trabalhou muito para capturar políticas e tentar fazer cumprir leis que garantam a queima contínua de combustíveis fósseis e a destruição contínua da Amazônia.
Espero que os brasileiros que compartilham dessas mesmas preocupações, e do entusiasmo sobre as novas oportunidades, considerem participar deste discurso, aprendam sobre a crise climática e se tornem participantes ativos nas eleições de outubro.
Em 2019, durante o Fórum Econômico Mundial, o sr. se encontrou com Bolsonaro e disse estar profundamente preocupado com a Amazônia. Na ocasião, ele respondeu que queria explorar os recursos da floresta com os EUA. O sr. se recorda desse diálogo?
Como interpretou isso? [Risos] Sim, lembro muito bem desse diálogo. Na verdade, foi capturado em um vídeo. Perguntei também sobre meu querido e falecido amigo Alfredo Sirkis, e ele também fez um comentário.
Quanto à fala de convidar os Estados Unidos para se unirem ao Brasil e explorar os recursos da Amazônia, minha resposta foi “não tenho certeza do que você quer dizer com isso”. E a razão pela qual respondi dessa forma é, em primeiro lugar, [o fato de] o povo brasileiro apoiar a proteção da Amazônia, não sua exploração destrutiva.
Eu não acho que isso melhoraria as atividades que ele tem em mente para qualquer empresa nos Estados Unidos participar. Eu acho que essas atividades devem ser decididas pelos brasileiros e espero que levem isso em conta nas próximas eleições.
Há uma frase atribuída ao senhor de que a Amazônia não seria uma propriedade brasileira, mas de todos. O sr. já disse isso?
Não, eu nunca disse isso. Na verdade, posso enviar um material mostrando como isso foi um relato falso. Posso mostrar capítulo e versículo. Eu nunca disse isso.
Entendo muito bem que a Amazônia brasileira pertence ao Brasil. Certamente ela tem um significado global, mas as decisões sobre o futuro da Amazônia são decisões que devem ser tomadas pelo Brasil e não por qualquer outro que não seja brasileiro.
Pergunto isso pois o vice-presidente, Hamilton Mourão, já disse que o sr. defende a internacionalização da Amazônia, entendendo isso como uma ameaça. Como enxerga isso?
A Amazônia não vai ser internacionalizada. Ninguém vai falar, muito menos tentar qualquer mudança no controle do Brasil sobre a Amazônia brasileira, isso é absurdo e ridículo. Quem quer apelar demagogicamente ao nacionalismo pode fazer falsas ameaças à integridade territorial do Brasil.
O sr. vem alertando sobre a crise climática há anos e agora estamos vendo o problema piorar. Acredita que a crise está se desenrolando mais rápido do que esperava?
Sim, e mais importante do que o que eu penso, os próprios cientistas —que são os verdadeiros especialistas na crise climática— ficaram surpresos com o desenvolvimento ainda mais rápido do que haviam projetado.
No Brasil, vocês viram por conta própria as múltiplas emergências de inundação. Só neste ano, as fortes chuvas no estado de Pernambuco —236 milímetros em 48 horas— mataram pelo menos 121 pessoas. Em abril, o Rio de Janeiro experimentou chuvas recordes de 800 milímetros em 48 horas, muitas inundações e deslizamentos de terra que mataram pelo menos 18 pessoas.
Além disso, o surgimento de condições de seca ocorreu mais rapidamente do que muitos dos cientistas projetaram. No ano passado, a emergência da seca na Bacia do Prata custou ao Brasil US$ 4,3 bilhões (R$ 22,8 bilhões). Um ano antes, a seca na região do Pantanal custou US$ 3 bilhões em danos (R$ 15,9 bilhões).
Os rendimentos das colheitas estão sendo reduzidos pela crise climática para as culturas de trigo, milho, soja e arroz no Brasil. E, claro, quando você queima combustíveis fósseis, as emissões incluem não apenas os gases de efeito estufa, como o CO2, mas também a poluição particulada que causa muitas mortes.
Em 2020, último ano para o qual temos as estatísticas, houve mais de 84 mil mortes prematuras no Brasil pelos efeitos da respiração dessa poluição, oriunda principalmente da queima de combustíveis fósseis.
A Amazônia, como os brasileiros sabem, está se aproximando de um ponto de inflexão negativo, por causa dos muitos impactos da crise climática, especialmente pelos incêndios, que são intencionalmente causados para desmatar ilegalmente terras. Então, por essas e outras razões, o Brasil está em uma encruzilhada e a hora de agir é agora.
A boa notícia é que o Brasil tem um potencial incrível para criar milhões de empregos e lucrar com a implantação de novas tecnologias que são mais limpas e mais baratas. O Brasil tem uma das energias eólica e solar mais baratas do mundo. Hoje em dia, é oficialmente muito mais barato construir uma nova capacidade eólica no Brasil do que continuar operando usinas de gás ou carvão existentes.
O Brasil também tem o menor custo para a produção de hidrogênio verde do que qualquer outra nação no mundo. O chamado hidrogênio azul não tem chance de sucesso, é um beco sem saída —e é claro que as indústrias de combustíveis fósseis querem direcionar as pessoas para o hidrogênio azul. Mas o hidrogênio verde é uma oportunidade incrível para o Brasil e estamos começando a ver uma verdadeira decolagem para essas novas indústrias.
Nos anos 2000, o senhor admitiu ter perdido uma eleição muito apertada. Hoje, Bolsonaro insiste em desacreditar as urnas eletrônicas, levantando dúvidas se ele aceitaria algum resultado negativo. O sr. acredita em algum risco de golpe?
Bem, acho que o apoio à liberdade, à autodeterminação e à democracia representativa está sendo desafiado em muitos países ao redor do mundo. Vladimir Putin tem orquestrado a oposição à democracia em muitos países. Putin e seus aliados têm tentado destruir o futuro da democracia e substituir por ditaduras autoritárias.
As ditaduras são extremamente prejudiciais por razões que a maioria das pessoas entende. Não sou um especialista no diálogo político no Brasil, mas direi que qualquer líder nacional que tente minar a confiança pública e a capacidade do povo de se governar é um inimigo da democracia. [Tomem] Cuidado com acusações falsas, histórias inventadas e o esforço para criar falsas dúvidas se a democracia funciona.
A democracia é a melhor forma de governo em todos os países. Mas as pessoas que amam a autodeterminação e o autogoverno devem estar realmente dispostas a trabalhar duro para protegê-la.
O Climate Reality Project está lançando um programa de treinamento focado no Brasil. Do que se trata?
Este treinamento é projetado para fornecer às pessoas um conhecimento profundo sobre a crise climática, suas causas e soluções. Cada um que passar pelo treinamento estará conectado a uma rede de outras pessoas que estão nas mesmas circunstâncias. Eles terão um mentor e aprenderão a ser defensores mais eficazes de soluções para a crise do clima.
Este é um momento crítico, especialmente no Brasil, porque o papel do Brasil é muito significativo nesse contexto. É um país que vem sofrendo muitos dos impactos da crise climática e está em posição favorável para fornecer muitas das soluções.
RAIO-X
Al Gore, 74
Ex-vice-presidente dos Estados Unidos na gestão Bill Clinton (1993 a 2001), Al Gore é hoje um ativista da causa ambiental. Em 2007, venceu o Prêmio Nobel da Paz junto com o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), pelo esforço de disseminar informações sobre o aquecimento global. Nesse mesmo ano, seu filme “Uma Verdade Inconveniente”, que fala sobre mudanças climáticas, foi o ganhador do Oscar de melhor documentário. Em 2000, Gore foi o candidato do partido Democrata nas eleições presidenciais americanas, da qual saiu perdedor após uma disputa apertada com George W. Bush.