A pandemia talvez comporte algum incentivo a que se evite manter debaixo do tapete a maior das dúvidas do século 21: se os atuais padrões socioeconômicos poderão continuar a coexistir com a biosfera. Não foi por outra razão que emergiu, há quase trinta anos, o novo valor que é a sustentabilidade.
Todavia, o mais provável é que as instâncias de governança global mais graúdas – como o G20 ou a Assembleia Geral da ONU – continuem a agir sem realmente levar a sério a grande dúvida do século. Pois os agentes que as influenciam tendem a ser os últimos da fila entre os que chegam a se sensibilizar com este tipo de aflição. Além disto, não há motivo para qualquer otimismo em contexto mundial ultrabipolar, espécie de segunda Guerra Fria, em que os governos dos EUA e da China disputam outro gênero de pioneirismo. Para ambos, a transição energética das fósseis às renováveis é muito menos relevante que a nova corrida para a Lua, por exemplo. Circunstância em que iniciativas nos âmbitos das grandes convenções internacionais dos anos 1990 – principalmente as do clima e da biodiversidade – têm reles interesse se comparadas aos seus atritos diplomáticos na OMC ou na OMS.
Ao mesmo tempo, esta inevitável inércia da desgovernança mundial da sustentabilidade não deve impedir que sociedades civis, em mais de 190 nações, exerçam legítima pressão, especialmente sobre os muitos entes subnacionais, para aumentar as chances de que a sustentabilidade deixe de ser um acessório, quando não mero enfeite. Para tanto, certamente contribui a vigência da Agenda 2030, com seus dezessete ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável). Porém, ela só poderá cumprir o relevante papel institucional de abrir caminhos na direção de tão nobres objetivos, se – além de o mundo evitar acidente nuclear – consiga acelerar o ritmo em que vêm surgindo as mais influentes inovações tecnológicas. A sustentabilidade vai depender essencialmente da velocidade com que surja um próximo padrão energético, capaz de favorecer o retorno de razoável cooperação internacional.
Recorrendo a uma metáfora, é como se Sísifo não estivesse apenas condenado a repetir eternamente a tarefa de empurrar a pedra até o topo da montanha, mas também a executá-la com crescente rapidez. E é a própria história, natural e socioeconômica, que mostra o quanto a humanidade está obrigada a ser cada vez mais ágil em inovar. Sem isso, com certeza já teria sucumbido à profecia malthusiana, não apenas no quesito alimentação, mas também no âmbito energético e nos de muitos outros recursos naturais.
Mas, muita atenção! Não se trata de conjectura, e sim de preciosas medições matemáticas estampadas nas 81 figuras com que o físico teórico Geoffrey West ilustrou suas teses sobre “as leis universais do crescimento, da inovação, da sustentabilidade e do ritmo de vida em organismos, cidades, economias e empresas”. Tal é o extenso subtítulo de seu prodigioso livro Scale, publicado, em 2017, pela Penguin (30 reais no kindle). Mostra como foram ficando cada vez mais curtos os intervalos entre as vinte mais importantes inovações
surgidas, desde o aparecimento da vida até a invenção do computador pessoal.
Das quais, mais da metade precederam o processo civilizador.
Sem uma única equação em 481 páginas, a obra consegue demonstrar a existência de surpreendentes regularidades e similaridades entre inúmeros fenômenos biológicos e socioeconômicos, principalmente referentes às “leis de escala”, a origem, tanto da teoria metabólica da ecologia, quanto da alometria, ramo da biologia. Embora o autor tenha inicialmente trabalhado com física quântica, no célebre laboratório Los Alamos, foi ali pertinho, no Instituto Santa Fé, que, nos anos 1990, se juntou a dois expoentes da macroecologia – James H. Brown e Brian J. Enquist – para desenvolver pesquisas de fronteira sobre sistemas complexos, tanto biológicos quanto socioeconômicos.
Do sistema imune ao mercado global, passando por um cérebro ou por um formigueiro, não faltam exemplos análogos em que amplas redes autoorganizadas fazem emergir – mediante simples esquemas operacionais e sem qualquer controle central – sofisticados comportamentos e tratamento de informações. E a maior parte de tais conjuntos também tem capacidade adaptativa, seja por evolução, como por aprendizado.
Isso tudo só pode parecer muito bizarro à esmagadora maioria dos que lidam com o drama da sustentabilidade, pois todos continuamos vítimas da pesada inércia disciplinar, estejamos refletindo em instituições de pesquisa, ou com a mão na massa em empresas e terceiro setor. Daí a importância de que se tome conhecimento dos resultados obtidos em um quarto de século de esforços transdisciplinares. Geoffrey West também nos lembra de uma entrevista em que perguntaram a seu saudoso colega Stephen Hawking, se este não seria o século da biologia, do modo em que o anterior foi o da física. A resposta não poderia ter sido mais direta e concisa: “será o século da complexidade”.
*José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP.
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-drama-da-sustentabilidade.ghtml