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Os consultores do CBC Marianna Albuquerque e Guilherme Lima comentam neste artigo sobre os instrumentos econômicos do Acordo de Paris e os obstáculos para a regulamentação do Artigo 6. 

Desde a década de 1970, os países buscam soluções multilaterais para questões climáticas. A partir das grandes conferências realizadas no âmbito da Organização das Nações Unidas, a exemplo da Conferência de Estocolmo (1972), da Rio92 (1992) e da Rio+20 (2012), diversos compromissos foram assumidos em prol do combate aos efeitos nocivos da mudança do clima. Destaca-se, nesse ínterim, a Convenção-Quadro das Nações Unidades sobre Mudanças do Clima (UNFCCC), assinada durante a Rio92, que fornece o principal marco regulatório para a ação nacional e coletiva sobre o tema.

Para que o monitoramento dos avanços e desafios de efetivação dos compromissos assumidos fosse constante, a UNFCCC previa a realização de Conferência das Partes periódicas. Na realização dos encontros, foram assinados acordos centrais do regime internacional de mudanças do clima, a exemplo do famoso Protocolo de Quioto, em 1997, e o Acordo de Paris, assinado em 2015, na 21ª Conferência das Partes (COP21). Por meio deste, os países signatários se comprometeram a reduzir as emissões, visando limitar o aquecimento global em 2ºC acima dos níveis pré-industriais, além de empreender esforços para alcançar a meta limite de 1,5ºC.

Os artigos do acordo estabelecem procedimentos e instrumentos para o alcance de suas metas, a exemplo do artigo 4º, que estabeleceu que as partes devem preparar, comunicar e manter sucessivas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs). Com a inclusão de metas individuais, baseadas no perfil do país e no histórico de emissões, o acordo buscou desfazer algumas distorções causadas pelas metas em bloco, ou até mesmo ausência de meta para alguns países, uma das principais críticas feitas aos tratados anteriores. Pela enorme disparidade, não só dos níveis de emissões, mas  também das possibilidades econômicas de investimento em políticas e tecnologias de mitigação e adaptação, as NDCs buscaram aplacar os questionamentos acerca da repartição dos ônus, feitos tanto por países desenvolvidos quanto em desenvolvimento.

Entretanto, apesar dos inegáveis avanços, muitos desafios se mantêm. Um tema que vem sendo alvo de discussões e dissensos se relaciona com os termos do artigo 6º, que estabelece a possibilidade de as partes cooperarem de maneira voluntária na implementação de suas NDCs para promover o desenvolvimento sustentável e a integridade ambiental. Todos os signatários precisam reduzir suas emissões, mas estas podem assumir diferentes formas, a depender do perfil do país: redução do desmatamento, promoção de energias renováveis, mudanças no setor de transporte e na indústria, entre outras. Em geral, os países priorizam as ações de menor peso econômico e menor impacto sobre sua economia, mas ainda assim o custo para redução de emissões é fortemente variável. Deste modo, para alguns países pode ser mais vantajoso comprar créditos de carbono do que reduzir as emissões em seu próprio território. Portanto, o artigo 6º se insere em um ponto central do debate ambiental e climático: a necessidade de tornar as políticas de combate às mudanças climáticas economicamente viáveis e atrativas já no curto prazo. Para alcançar esse objetivo, foram criadas duas modalidades de cooperação:

  1. O comércio de certificados de redução de emissões entre as partes, os chamados Resultados de Mitigação Internacionalmente Transferidos (ITMO); e
  2. Um mecanismo que permite a transação de créditos entre entidades públicas e privadas, os quais são gerados por projetos de redução das emissões de GEE.

Os ITMO, estabelecidos nos artigos 6.2 e 6.3, permitem a transação direta de reduções de emissões entre diferentes partes, de modo que um país poderá comercializar com outros os créditos de emissões evitadas em seu território a partir de ações de mitigação. O país comprador dos créditos, por outro lado, poderá contabilizá-los como parte da meta de sua NDC. Após a operação, os países deverão registrar as trocas de créditos e os ajustes correspondentes em suas NDCs. Contudo, para que esse mecanismo possa contribuir efetivamente para o alcance dos objetivos do Acordo de Paris, é preciso que haja transparência e mecanismos de acompanhamento e controle das transações. Os principais debates, atualmente, estão concentrados na regulamentação dessas exigências e na definição dos tipos de atividades elegíveis.

Uma das principais referências sobre o assunto, o economista Seroa da Motta (2021) propôs um ciclo de implementação dos ITMO, que poderia dinamizar os procedimentos.

  1. Contrato do ITMO – As Partes, ou seja, o país vendedor e o comprador do ITMO, assinam um acordo de implantação, o qual deve definir: a entidade vendedora e a compradora; a quantidade inicial a ser transacionada; os tipos de atividades de mitigação; a cobertura temporal dos resultados transferidos; e os protocolos de integridade ambiental, de transparência e de monitoramento.
  2. Operação do ITMO – O governo do país vendedor, de forma independente, desenha as políticas públicas e os incentivos para projetos públicos e privados que geram as reduções de emissões e os critérios de repartição dos benefícios gerados no ITMO. Ambos os países monitoram, reportam e verificam emissões transacionadas de acordo com cláusulas do contrato.
  3. Comercialização e ajustes correspondentes – É feito o registro das transações de acordo com as regras de integridade ambiental, transparência e acompanhamento. Ambos os países realizam os ajustes correspondentes das suas NDCs junto ao órgão regulador do Acordo de Paris.

Já o mecanismo de transação de créditos, descrito nos artigos 6.4 a 6.6 do Acordo de Paris, cria a possibilidade de transação de créditos de carbono entre entidades públicas e privadas resultantes de projetos de mitigação. A título de ilustração, uma empresa que opera em determinado país pode implementar uma ação que reduza as emissões de gases de efeito estufa de suas operações e, na sequência, vender os créditos associados a essa redução para outro país, o qual poderá contabilizar esses créditos para o alcance da meta de sua NDC.

Há dois conceitos importantes nesse tema, que configuram dificuldades para a implementação do mecanismo: a adicionalidade e a dupla contagem. Sobre o primeiro, o obstáculo consiste na necessidade de demonstrar que a redução de emissões decorre especificamente do incentivo econômico recebido, e que não teria ocorrido em sua ausência. Sobre o segundo, o artigo 6.5 busca evitar que ambos os países envolvidos na comercialização contabilizem a redução de emissões.

Há, ainda, um desafio adicional, decorrente da estrutura necessária para operacionalizar esse mercado. A Conferência das Partes, além de aprovar as regras, modalidades e procedimentos para a implementação desse mecanismo, também deverá estabelecer um órgão gestor para supervisionar o processo e ser responsável pela verificação dos créditos de carbono gerados. Os projetos de redução de emissões também devem ser aprovados pela Autoridade Nacional Designada do país no qual é implementado o projeto. Um possível ciclo de implementação destes mecanismos, conforme apresentado em Seroa da Motta (2021), é o seguinte:

  1. Desenvolvimento do projeto – Uma entidade pública ou privada patrocinadora do projeto o desenvolve com regras, modalidades e procedimentos estabelecidos pelo órgão gestor do Acordo de Paris, e um auditor independente credenciado valida o projeto.
  2. Aprovação e registro do projeto – A Autoridade Nacional Designada (AND) do país hospedeiro do projeto o aprova o envia para registro no órgão gestor do Acordo de Paris. O organismo designado pelo órgão gestor do Acordo de Paris registra, verifica e emite certificados de créditos de carbono do projeto.
  3. Comercialização e ajustes correspondentes – A entidade patrocinadora vende créditos do projeto, a AND do país hospedeiro do projeto registra venda junto ao órgão gestor do Acordo de Paris, e o órgão gestor do Acordo de Paris realiza os ajustes correspondentes nas NDCs.

Pelo exposto acima, percebemos, portanto, que o Artigo 6 ainda carece de regulamentação, devido, principalmente, à falta de consenso entre as partes. Os desafios para a normatização incluem, por um lado, a complexidade técnica, e por outro, as interpretações divergentes sobre o texto do artigo. A efetivação dos dispositivos do artigo 6º é um dos grandes temas a serem discutido na COP26, em Glasgow, sobretudo porque a comercialização de carbono é estratégia central para a retomada verde pós-pandemia. Estimativas indicam que os instrumentos criados pelo artigo 6 poderão gerar um volume de créditos de carbono entre US$ 58 bilhões e US$ 167 bilhões, até 2030. O Brasil deve ser um dos principais beneficiados, ao possuir vantagem competitiva em atividades de baixo carbono, como conservação florestal, geração de energia solar, eólica e de biogás, e nas ações de eficiência energética.

Referências

SEROA DA MOTTA, R. As vantagens competitivas do Brasil nos instrumentos de mercado do Acordo de Paris. Instituto Clima e Sociedade, Rio de Janeiro/RJ – Brasil, 2021.

*O texto publicado originalmente no site do MNDE, no dia 09/08/2021.