Os primeiros dias da 26ª Conferência das Partes (COP26) têm sido agitados para quem acompanha a agenda climática no Brasil. Isto se deve em grande parte aos anúncios do governo brasileiro, que estabeleceu uma nova meta de redução de 50% das emissões de Gases do Efeito Estufa (GEE) até 2030 e, em seguida, aderiu ao compromisso global pela redução das emissões de metano, o Global Methane Pledge. Mas será que a nova meta apresentada representa um aumento da ambição climática do Brasil? E como a adesão ao compromisso sobre as emissões de metano poderá afetar o país?
Com relação à primeira questão, é preciso relembrar que o Brasil apresentou sua primeira Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) em 2015, com a meta de redução de 37% das emissões até 2025 e uma meta indicativa de 43% até 2030, ambas em relação ao nível de 2005, ano base adotado na NDC brasileira. Desta forma, o país deveria chegar ao final desta década com emissões anuais de 1,2 giga toneladas de gás carbônico equivalente (GtCO2e). Mas, para entender melhor o posicionamento do Brasil ao longo dos últimos anos, é necessário apresentar um histórico com as idas e vindas.
No final do ano passado, foi apresentada uma nova versão da NDC brasileira, conforme exigido pelo Acordo de Paris, segundo o qual os países devem atualizar seus compromissos a cada cinco anos, sempre com um aumento da ambição climática. Nesta revisão foram reafirmadas as metas de redução de emissões em 37% até 2025 e em 43% até 2030 em relação ao nível de 2005. Essa versão também trouxe uma meta indicativa de alcance da neutralidade climática até 2060. Posteriormente, em abril deste ano, durante a Cúpula de Líderes sobre o Clima, o presidente brasileiro anunciou que a meta de neutralidade climática poderia ser antecipada para 2050, mas condicionada ao apoio financeiro dos países mais ricos.
É muito importante registrar que, para além das metas percentuais de redução, um fator essencial para entender a ambição climática diz respeito aos valores usados como referência nas diferentes NDCs já apresentadas pelo Brasil: a NDC de 2015 considerava os valores presentes no 2º Inventário Nacional de Gases de Efeito Estufa, enquanto na NDC atualizada no final de 2020 se baseou nos níveis de emissões retratados no 3º Inventário Nacional. Uma das diferenças entre os dois inventários é que o aprimoramento da metodologia, em constante aprimoramento, fez com que o nível de emissões passadas fosse revisado para cima, principalmente no setor chamado de AFOLU (Agricultura, florestas e outros usos do solo), que inclui o desmatamento.
Contudo, essa mudança na referência utilizada fez com que a NDC de 2020 passasse a ser menos ambiciosa que a anterior, ao contrário da exigência presente no Acordo de Paris. Desta forma, em termos absolutos o país poderia chegar a 2025 e 2030 com emissões superiores às previstas na primeira NDC apresentada em 2015, o que fez com que a submissão apresentada pelo governo no ano passado fosse fortemente criticada pela sociedade.
Mudando de números relativos (percentuais) para valores absolutos, a meta da primeira NDC que previa redução de 43% nas emissões anuais significaria chegar a 2030 com emissões de 1,2 GtCO2e, considerando o valor de referência que constava no 2º Inventário Nacional (2,1 GtCO2e emitidos em 2005). Já na segunda NDC, aquela atualizada em 2020, o Brasil manteve a meta de 43% de redução de emissões, porém poderia chegar a 2030 com emissões de 1,62 GtCO2e, visto que o mesmo percentual de redução seria aplicado sobre os montantes que constam no 3º Inventário Nacional, onde o nível de emissões referentes a 2005 foi revisado para 2,84 GtCO2eq. Por isso, a meta apresentada em 2020 pelo governo foi alvo de tantas críticas e classificada por muitos como uma “pedalada”.
Foi com este pano de fundo que o Brasil submeteu a nova meta de redução de 50% das emissões, em Glasgow. Entretanto, pairava ainda a dúvida de qual seria a referência utilizada para essa meta, visto que o país já publicou em 2021 o seu 4º Inventário Nacional, revisando novamente os níveis de emissões dos anos anteriores (inclusive de 2005), desta vez para baixo. Após muitos questionamentos, o ministério explicou que a base de cálculo será de fato com base no último inventário publicado.
Esta questão é extremamente relevante porque, se considerado o nível de emissão do 3º Inventário (2,84 GtCO2e em 2005), significa que deveríamos chegar a 2030 com emissões anuais de 1,42 GtCO2e. Ou seja, ainda estaríamos acima da meta que constava na primeira NDC enviada pelo país, aquela de 2015. Entretanto, considerando o 4º Inventário como referência (2,56 GtCO2e em 2005), a meta de 50% apresentada levaria o país a emissões de 1,28 GtCO2e em 2030, ou seja, a um patamar mais próximo da NDC de seis anos atrás.
Ou seja, como a nova meta está de fato atrelada ao 4º Inventário, ela chegará perto de igualar a meta da NDC de 2015, mas não chega a compensar a chamada “pedalada” que foi dada com a NDC apresentada em 2020, não representando, portanto, um aumento da ambição climática do país.
Por outro lado, deve-se levar em consideração que, conforme mencionado anteriormente, a metodologia para contabilização das emissões está constantemente evoluindo, em particular no setor de AFOLU. Desta forma, uma vez que a revisão mostrou que o nível de emissões em 2005 foi maior do que o previsto inicialmente, alcançar a meta absoluta da primeira NDC (1,2 GtCO2e) certamente implicaria uma redução absoluta maior. Da mesma forma, caso a revisão tivesse apontado para um nível mais baixo de emissões no ano base, a manutenção da meta de 43% que constava nas duas primeiras NDCs significaria na verdade um aumento da ambição climática.
Com relação à adesão do Brasil ao Global Methane Pledge, compromisso para a redução das emissões de metano, a notícia foi recebida com surpresa. O gás metano possui um potencial de aquecimento global consideravelmente superior ao gás carbônico, o que significa que ele contribui de forma mais significativa para as mudanças climáticas. Para ficar ainda mais claro, no médio prazo (20 anos), o metano contribui para o aquecimento global 56 vezes mais do que o gás carbônico, enquanto a longo prazo (100 anos), essa relação é de 21 vezes.
É importante lembrar que o metano é o segundo principal GEE emitido pelo Brasil, atrás somente do gás carbônico, e sua origem está majoritariamente na agropecuária e, em menor parcela, do setor de resíduos. Por outro lado, o gás carbônico tem origem principalmente no setor de energia e de mudança no uso da terra, que inclui o desmatamento. Desta forma, as ações para a redução das emissões do metano deverão priorizar a agropecuária, em especial a pecuária. São medidas já amplamente conhecidas e que vêm sendo incentivadas pelo Plano ABC (Agricultura de Baixo Carbono), que recentemente foi revisado para ABC+. A surpresa da adesão do país ao compromisso, portanto, se refere ao fato de este ser um setor reativo a mudanças e que ainda identifica as práticas de preservação ambiental como entraves ao desenvolvimento. Além, claro, da grande influência política dos integrantes deste segmento.
Independentemente de os anúncios feitos até o momento representarem ou não um avanço na agenda climática, eles mostram uma tentativa do governo brasileiro de sair do isolamento internacional, especialmente na área ambiental, gerado pelos seus próprios posicionamentos nos últimos dois anos. E para além de simplesmente anunciar metas, é necessário estabelecer um plano bem definido para seu alcance, sem o qual ficaremos apenas fazendo contas e atualizando números. Talvez o cronograma para zerar o desmatamento ilegal até 2028, outro anúncio feito pelo governo brasileiro nesta semana, seja um passo importante neste sentido, mas apenas nos próximos meses saberemos se haverá de fato algum avanço ou se será apenas para “inglês ver”.
*Guilherme Lima é Economista e Coordenador de Projetos do Centro Brasil no Clima
Artigo publicado originalmente no Estadão em 04/11/2021