A onda de calor das últimas semanas na Europa pode fazer a opinião pública pressionar por metas mais ambiciosas para a política de clima dos governos, mas analistas e políticos creem que será difícil essa iniciativa compensar o retrocesso que a região sofreu na agenda ambiental com a guerra na Ucrânia.
Os recordes de temperatura nesta semana no Reino Unido e o calor com incêndios florestais em Espanha, Portugal e França podem ter matado mais de 2.000 pessoas. Contudo, o impacto desse evento, que era previsto em estudos de simulação do clima da região, pode ser pouco diante das forças provocando um recuo nas metas de corte de emissão de CO2 do continente.
Com o conflito levando a Rússia a limitar a exportação de gás natural, ao menos quatro países (Alemanha, Itália, Holanda e Áustria) já anunciaram que compensarão a escassez ampliando a atividade de usinas a carvão, combustível que produz mais gases de efeito estufa. Para políticos locais, a esperança de reverter a tendência é baixa.
— Na Europa, já vinhamos enfrentando ondas de calor intensas nos últimos dez anos, que acabaram gerando uma preocupação muito transitória. O discurso é que a economia vem primeiro e a ecologia, depois — afirma Claude Gruffat, deputado francês do bloco verde no Parlamento Europeu. — Na França, o governo diz que os verdes defendem uma ecologia punitiva, mas punição é o que nós vamos ver nos próximos anos se não mudarmos de comportamento. Será mais calor, mais inundações, mais migrações. — completa.
Europa registra temperaturas superiores a 40°C em onda de calor antecipada
Junto com Anna Cavazzini (Alemanha) e Michèle Rivasi (França), Gruffat formou uma comitiva de eurodeputados que visitou o Brasil nesta semana para discutir cooperação ambiental com indígenas, cientistas, gestores públicos e empresários. Em mensagens ao GLOBO, o trio falou sobre a situação tensa agora nas discussões sobre clima na Europa.
— Estamos em tempo de múltiplas crises, com a guerra seguindo na Ucrânia e a crise do clima se acelerando, e temos de solucionar essas crises de maneira conjunta — diz Cavazzini.
— Alguns países estão ampliando o uso de carvão por tempo limitado, ou estendendo um pouco a vida útil de suas usinas a carvão, mas mesmo isso já deixa claro que somos dependentes demais da importação de combustíveis fósseis — completa. — A solução é a transição rápida para energia renovável, para que possamos ser mais independentes e combater a crise do clima antes que seja tarde demais.
Prazo apertado
Segundo cientistas do grupo de trabalho 1 do IPCC, o painel do clima da ONU, a meta mais ambiciosa do Acordo de Paris para o clima requer que as atuais emissões globais de CO2, cerca de 37 bilhões de toneladas por ano, caiam pela metade até 2030 e sejam zeradas por volta de 2050.
— Em poucos anos, as portas já vão se fechar para esse cenário mais otimista, que seria conseguir limitar o aquecimento a 1,5°C. A gente teria que conseguir uma redução massiva de emissões já em 2025, ou seja, temos três anos — diz o climatologista Sérgio Henrique Faria, do Centro Basco Para Mudança Climática, coautor do relatório do IPCC que delineou esses cenários.
Baseado em Bilbao (Espanha), o cientista experimentou pessoalmente um calor de 42°C nesta semana, numa cidade que costuma ter verão bem mais ameno.
Segundo dados globais da NOAA, agência de pesquisa atmosférica dos EUA, até junho deste ano o clima europeu estava 0,87°C mais quente do que na média do século XX, o sexto maior valor desde o século XIX (veja gráfico). Quando dados de julho forem computados, é provável que o valor suba.
Uma variação média abaixo de um grau pode parecer pequena, mas ao longo do ano ela se traduz na forma de grandes oscilações, com maior frequência de eventos climáticos extremos, a exemplo da onda de calor atual. A marca de 40°C registrada em cidades como Londres, além disso, é mais preocupante do que o calor extremo na Grécia e países europeus de verão tipicamente intenso.
— O Sul da Espanha é muito mais preparado para as ondas de calor que o Norte, tanto cultural quanto arquitetonicamente, e lá eles sabem se comportar quando elas ocorrem — diz Faria. — À medida que você vai subindo para o Norte da Espanha, França, Alemanha e Reino Unido, as pessoas não sabem lidar bem com o calor e fazem coisas absurdas.
O cientista cita casos de insolação registrados na Inglaterra quando as praias lotaram na semana passada, por exemplo, e pessoas passando mal após praticar jogging sob 35°C ou mais.
Equação global
Ainda que o eleitorado europeu se convença da gravidade da situação, melhorar o clima da região é um desafio, porque envolve uma equação global. Hoje, EUA e China sozinhos representam quase metade das emissões do planeta. A Europa detém um quinhão minoritário (15%) e seria incapaz de efetuar sozinha a redução global no CO2 necessária ao Acordo de Paris.
A promessa atual da União Europeia é de cortar 55% das emissões até 2030, tomando como base as emissões de 1990. Ainda é pouco, mas é melhor que a média dos países industrializados de outras regiões do mundo. Nas últimas décadas, o bloco europeu tem sido em média uma força geopolítica positiva para impulsionar o aumento de ambição nas promessas de cortes de outros países.
É verdade que o bloco ainda não se entende bem sobre como financiar a transição energética nas nações em desenvolvimento. Mas se a agenda doméstica de clima continuar perdendo força na Europa, é possível que o continente perca a influência até agora benigna sobre países de baixa renda.
O bloco dos verdes, porém, segue fazendo pressão para que o mercado europeu se feche a países com alto índice de emissões de carbono.
— No momento, estamos rascunhando uma legislação para tornar as cadeias de suprimento livres de desmatamento, e é claro que isso pode afetar o Brasil — diz Anna Cavazzini, da Alemanha, lembrado que a perda de mata amazônica é a principal fonte de emissões brasileiras. — Com essa legislação, se produtos de commodity vierem de áreas com desmate recente, eles não poderão entrar na União Europeia.
Segundo analistas brasileiros, porém, é possível que o governo daqui, pressionado internacionalmente pela devastação da Amazônia, faça uso diplomático de uma eventual freada da Europa nas metas para o clima.
— No momento político delicado que a gente está vivendo, tudo vira munição para discursos diversionistas que o presidente Bolsonaro faz — diz Guilherme Syrkis, diretor do think-tank Centro Brasil no Clima. — Mas a verdade é que, mesmo com essa realidade complicada da guerra e das ondas de calor terríveis, por enquanto a Europa continua na vanguarda da política climática.